[O anjo de mármore te julgando por querer desenterrar o passado] | Photo by Diego Marín on Unsplash

Desenterro Programado

Sobre a necessidade de desenterrar pessoas e sentimentos.

Danilo H.
3 min readApr 8, 2023

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Todos os anos, no mesmo dia, eu entro no cemitério da Consolação, viro à esquerda, conto quinze lápides, viro à direita e te espero sentado.

Na minha frente há um anjo chorando e posso jurar que há alguém prestes a roubar um vaso perto de mim (essa cidade não falha em me surpreender).

Minutos depois, você aparece com uma pá, a gente discute na frente daquela lápide, um querubim de mármore nos encara e, por fim, te convenço a voltar para casa.

Impedir um desenterro é sempre um grande desafio.

Às vezes nós enterramos algumas pessoas e seguimos adiante.
Em outros momentos, elas é que nos enterram e somem de nossas vidas sem aviso prévio.

Mas uma coisa é certa: aquela vontade sempre volta. Há um desejo implacável que rodeia tudo aquilo que evaporou ou foi devorado pela terra.

Não importa se a tal pessoa foi enterrada há cinco dias ou há cinco anos, por vezes, sentimos uma vontade absurda de revivê-la.

Eu bem sei que, se fosse possível, você usaria um tabuleiro ouija para elucidar as dezenas de pensamentos que invadem a sua cabeça.

Será que aquela pessoa está feliz?
Será que aquela pessoa está com alguém?
Será que aquela pessoa sente a minha falta?

E o pior de todos os pensamentos é, justamente, o mais recorrente.

“As coisas eram tão boas naquele período, por qual motivo eu tive que enterrar tal pessoa?”

Diferente do ChatGPT que é programado para ser imparcial na maior parte do tempo, a nossa mente prefere nadar contra a correnteza.

As memórias que armazenamos tendem a ser, ou boas demais, ou tristes demais. Raramente nós guardamos os momentos com parcimônia.

Nosso cérebro vai dizer “Sim” para o que prevalecer e, por conta disso, queremos desenterrar alguém mesmo depois de tudo que aconteceu.

Será um cheiro, um sabor, um lugar, uma palavra ou uma peculiaridade que desencadeará a saudade que, por sua vez, levará você a desenterrar alguém.

Os dias mais floridos, quentes e saborosos irão florir pelos cantos da sua mente e, propositalmente, todo o resto (caótico) sobre a tal pessoa será abafado.

Lembrar o que causou a dor, o fim ou o “enterro” demanda muita coragem.

Dezenas de estátuas rodeiam o lugar que você, desesperadamente, tenta cavar… e atrás de cada uma delas há um motivo.

Elas não estão com um semblante sério à toa.

A memória transborda de momentos de felicidade, mas nos bastidores você se sentia agredido.
Aquele sorriso te desperta serenidade, contudo, você sofria em silêncio.
Havia um encaixe tão gostoso entre vocês, entretanto, haviam microagressões para onde quer que você olhasse.

Essa necessidade de desenterrar os que já se foram da sua vida só aparece em momentos muito específicos.

Talvez seja uma data que era importante para vocês, ou até mesmo uma estação do ano (o frio e a chuva te dizem algo?).
Quem sabe seja uma questão sensorial (toque, cheiro, sons, sabores e etc) ou até mesmo uma atitude.

Nada é por acaso, nem mesmo os lugares que as pessoas ocupam em nossas vidas.

Cabe a nós ligarmos esses pontos e deixarmos no passado aquilo que pertence a ele.

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Danilo H.
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Written by Danilo H.

Aqui eu escrevo sobre desconfortos, alegrias e sobre nós.

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