Demerara
Esse texto foi feito para chegar (propositalmente) tarde demais.
Uma das minhas maiores virtudes e, fatalmente, um dos meus maiores defeitos é ser uma pessoa muito insistente… essa dádiva é, sem sombra de dúvidas, a faca de dois gumes que mais me machuca.
Ontem, pela última vez, te vi em um lugar dos mais aleatórios possíveis: na prateleira do supermercado.
Gostar de alguém é exatamente como andar por um corredor repleto de itens e procurar algo muito específico enquanto não se importa com todo o resto.
Afinal, escolher é exatamente isso: olhar para um vasto mundo de possibilidades e demonstrar um tipo de predileção por algumas coisas em detrimento de outras.
Engana-se quem acredita que cada “sim” ou “não” são feitas baseadas no amor ou na paixão… claro, você pode dizer que essas são suas motivações, mas há algo maior por trás disso.
A admiração é o sentimento que move nossas decisões.
Você não pode amar aquilo que não admira ou respeita… bem, você pode tentar à vontade, porém, seguirá com aquela sensação de algo está fora do lugar.
Isso acontece, em grande parte, pois o ato de admirar está intimamente ligado com o nosso conjunto de valores… por vezes, nós admiramos aquilo que parece verdadeiro ou “correto” na nossa visão de mundo.
E nesse processo é que podemos aceitar, justamente, o que nos faz mal.
Te admiro, mas sinto que minha serventia é inflar o seu ego.
Te admiro, mas você me trata como um segredo.
Te admiro, contudo, sinto que você apenas me ouve e não me escuta.
E a admiração, tal como qualquer sentimento, pode mudar quando menos esperamos.
Cedo ou tarde acontecerá.
Você olhará para Aquela Pessoa e, de repente, nada será mais o mesmo.
Não foi o amor que “foi embora” ou o pano da paixão que caiu igual a um truque de mágica.
Foi a admiração que se transfigurou em normalidade.
Não necessariamente há ódio ou rancor nesse processo, a pessoa segue a mesma, mas o sentimento apenas mudou… ela passa a ser algo ordinário (tudo que não é predileto pra ti).
É como conseguir olhar para o céu quando o sol se esconde atrás de uma nuvem.
E essa violenta mudança de perspectiva aconteceu hoje, quando vi aquele pacote de açúcar demerara na prateleira (o seu predileto). De repente, foi como se eu tivesse te comprimido dentro de um pacote e te deixado lá.
Há uns meses, eu teria corrido até a prateleira, rompido o lacre e virado o conteúdo na minha boca… mas hoje eu apenas empurrei meu carrinho até a próxima seção do supermercado.
Algo espetacular se tornou trivial e isso faz parte da vida.
Toda admiração morre para que novas consigam florir de dentro pra fora.